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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Candomblé Tradicional e a Reafricanização.


Pai Pecê, fala sobre o Candomblé Tradicional e a Reafricanização.

A cada dia, nos deparamos com a ansiedade das pessoas em querer mostrar um “Novo Candomblé”, seja para os filhos de sua comunidade, seja para as pessoas que visitam seus terreiros. Muitos que defendem a “reciclagem” do Candomblé ou a reafricanização, se fundamentam afirmando que o “Antigo Candomblé da Bahia” não é como na África, que foi adaptado ao Brasil e, sendo assim, qual o problema em se reciclar, em criar um novo Candomblé? Ou mesmo reafricanizar o existente.

Antes de tudo, em relação a fundação do Candomblé da Bahia, temos que ter em mente as dificuldades que cercavam as pessoas, sobretudo os africanos que foram escravizados e, posteriormente, os seus descendentes que aqui estavam. Hoje, é muito fácil dizer que o Candomblé da Bahia é diferente da África, mas poucos refletem sobre as questões que motivaram essa diferença, que foi essencial para a manutenção de uma cultura.

Sim, há diferenças entre o Candomblé da Bahia e a Religião dos Òrìsàs existente na África. Primeiramente por questões culturais. No Brasil, o Candomblé foi erigido de forma clandestina, por pessoas que eram cerceadas de se expressar, de pensar e até mesmo de viver, ou será que alguém tem a ilusão de que a vida desses africanos foi fácil? Diante desse cenário hostil e violento, como cultuar em praças e ruas os nossos Òrìsàs, como na África? Isso era algo inconcebível (e ainda é), surgiram assim, as festas nos barracões, durante a noite, às escondidas, bem como, a estrutura do Candomblé como conhecemos hoje.

Alguns costumes e elementos foram adaptados no Brasil não com o objetivo de criar algo novo, mas sim, com o objetivo de perpetuar uma memória ancestral. Hoje conseguimos comprar de forma fácil sementes, favas, penas e roupas africanas, mas como fazer isso naquela época? Primeiro existia a necessidade da sobrevivência e em segundo, o comércio não era tão fácil e comum como hoje, afinal, a África não está aqui ao lado. Desse modo, toda adaptação que a religião sofreu à época, foi fundamental para que o Candomblé se fundamentasse no Brasil. Isso não acontecia pelo prazer ou vaidade daqueles negros africanos, mas pelo fato de ser a única forma de manter a cultura trazida nos calabouços dos navios negreiros. No entanto, nenhuma adaptação atingiu a essência, o mistério, a tradição.

Alguns dizem que cantamos errado que é necessário reciclar as palavras, que nossas evocações não são como na África, etc. Mas quando analisamos com cuidado o dialeto yorùbá (Candomblé de Ketu) ou o dialeto Fongbe (Candomblé de Jeje) falado hoje na África, identificamos uma grande poluição linguística oriunda do novo mundo, sobretudo dos povos colonizadores. Fazendo um paralelo, será que um jovem brasileiro de hoje, consegue compreender com perfeição o português falado na Bahia ou Rio de Janeiro de 300 anos? Certamente não, sendo que ele não está acostumado com a língua arcaica. Isso é o que acontece com alguns jovens africanos ou estudiosos que sugerem que nossas palavras, ditas e cantadas no Candomblé da Bahia, não são yorùbá ou fongbe. Eles são de outra geração, estão comparando coisas incomparáveis. Não podemos nos esquecer, ainda que, o dialeto religioso é distinto do dialeto “social”, pois existem palavras que só são conhecidas pelos adoradores de Òrìsà.

Talvez muitas pessoas também não se deem conta de que, após o período da escravidão, ficamos longos e mais longos anos sem receber em massa, novos africanos. Dessa forma, os tradicionais Terreiros de Candomblé, buscaram de forma veemente a manutenção daquilo que foi implantado pelos seus fundadores africanos, sendo que essa era uma das únicas maneiras de se preservar não somente a sua religião, mas a sua identidade cultural, moral e ancestral. Em contrapartida, a África sofria diversas mudanças, culturais e religiosas. Desse modo, a religião dos Òrìsàs na África hoje, também é diferente da Religião dos Òrìsàs na África de 300 ou 400 anos, nesse âmbito, qualquer tipo de comparação é totalmente equivocada.

Outro ponto que passa muitas vezes despercebido pela grande maioria, é que a África é um continente e não uma província em que todos os seus habitantes comungam do mesmo pensamento e tradições. Ou seja, quando um Babalawo Africano, oriundo de Ifon desembarca no Brasil e se depara com costumes de uma casa que foi fundada por negros de Oyo, certamente haverá choque de cultura. O mesmo acontecerá com o negro de Oyo que chegar aqui e for visitar uma casa fundada por negros Egba, embora africanos, a cultura é distinta.

Para reforçar isso, basta pensarmos no Brasil, a cultura do Baiano é diferente da Carioca, que é diferente da Paulista e assim sucessivamente. Não precisa nem mesmo sair de um Estado. A cultura do Baiano de Salvador é distinta da cultura do Baiano do Recôncavo, são culturas próximas, mas distintas. A cultura do Paulistano (capital) é distinta do Paulista (interior). Porque então, nós Brasileiros temos que pensar que o nosso Candomblé, que o nosso yorùbá tem que ser igual ao de todo africano que chegue ao Brasil, independente da parte da África que ele seja? Não podemos jamais esquecer, a África é um continente e não uma aldeia isolada que não sofreu adaptações e mudanças culturais ao longo do tempo.

Outro fato importante é o que chamamos no Brasil de Tradição de Asè/Família de Santo. Existem certas particularidades que pertencem a uma família/Asè e que não é realizada em outra família, sendo assim, como querer comparar à risca com a África? Talvez alguém diga: “Mas na África não é Assim”? Sim, também é, no entanto, as pessoas não sabem disso ou se negam a enxergar. O que chamamos no Brasil de Asè de família, na África é chamado de “Awo”. Isso significa que na África, uma pessoa pode pertencer a um determinado Awo que segue algumas características distintas de outro Awo (de outra família de Asè). Talvez um ritual é realizado em um Awo, mas no outro não. Talvez haja um interdito em um determinado Awo e no outro não.

Não podemos deixar que exista um novo Apartheid, desta vez motivado pelas diferenças existentes no Candomblé do Brasil em comparação com a África. Nós valorizamos como poucos a cultura africana e obviamente, porque essa cultura também é nossa. Mas observo com preocupação que nossa cultura africana está sendo desprezada e, muitas vezes atacada. Nós também somos os guardiões do culto ao Òrìsà, hoje se existe por alguns, uma busca pela África, é em decorrência da cultura apresentada por nós, descendentes desses africanos que derramaram o sangue para defender aquilo que acreditavam.

Peço que valorizem a nossa cultura e o sangue derramado pelos nossos ancestrais. O Candomblé no Brasil conseguiu superar muitos obstáculos, a escravidão e o preconceito (que ainda sofremos). Nossa religião possui casas centenárias, que carregam em suas terras, paredes, árvores, pedras e ferro, não somente a memória ancestral do povo negro, mas a herança cultural e religiosa, que conseguiu de forma próspera chegar aos dias de hoje.

O Candomblé não é imutável e talvez nada seja. Sim, há muitas coisas que o Candomblé no Brasil precisa avançar, uma delas é se valorizar. Valorizar seus ancestrais e sua cultura. Precisamos igualmente avançar nos aspectos sociais. Precisamos de avanços nas iniciativas que contribuam para a diminuição das distâncias sociais. Precisamos de avanços nas iniciativas que preservem a natureza (como é triste ir à mata ou cachoeira e deparar com alguidares, garrafas, plásticos, etc.). Precisamos de avanços no meio político, de avanços na educação das nossas tradições para as nossas crianças. Esses sim são alguns pontos que precisam evoluir rapidamente na nossa religião.

Precisamos, sobretudo, avançar naquilo que verdadeiramente move a nossa religião. A Fé! De nada adianta a busca por uma tradição que já mudou mesmo no berço da civilização se não existir a fé, se não existir a crença na Divindade para a qual nos prosternamos.

Que nosso Pai Òsùmàrè, abençoe todos e sejamos unidos e munidos de fé.

Pai Pecê - Babalòrìsà do Terreiro de Òsùmàrè